“Não atender ao choro do bebé durante a noite é como abandoná-lo”

Toda a gente que tem filhos sabe que este é capaz de ser o maior tema de conversa entre mães e pais, amigos, sogras, avós e demais interessados pelos bebés dos outros — basicamente qualquer pessoa acima dos 20 anos. A mãe vem com o seu bebé ao colo, e logo aterra a pergunta: já dorme a noite toda? A seguir, vem a história. Há sempre alguém, que conhece alguém, cujo bebé de dois meses dorme doze horas seguidas durante a noite. E, de repente, parece que todos os bebés do mundo — menos o nosso — dormem doze horas de seguida, quando ainda nem sequer têm dentes (se calhar quando chegarem os dentes já não dormem, mas isso é outra questão). De seguida, vêm todas as teorias, dependendo do interlocutor. Mas já está no quarto dele? Mas dorme consigo? Mas ainda mama? Mas não tem chupeta? E boneco? Tem um boneco?

O sono é um assunto. Mas tem mesmo de ser assim? Entrevistámos a antropóloga Helen Ball, investigadora na área da antropologia, fisiologia e biologia do sono do bebé. É consultora da UNICEF, participou na elaboração das recomendações do sistema de saúde britânico nas áreas do sono e do co-sleeping, é fundadora do Parent Infant Sleep Lab. Helen Ball vai estar em Lisboa, este sábado, para uma conferência no âmbito do Congresso Nacional do Bebé. Quisemos saber o que pensa sobre o treino do sono, sobre as expectativas dos pais, sobre o choro não atendido, mas também por que razão toda, mas toda a gente, gosta de se meter no quarto escuro dos outros.

Como se interessou pelo sono dos bebés?

Comecei a interessar-me quando era estudante universitária. Quando tive os meus filhos tudo começou a fazer mais sentido, porque não pensamos nestas coisas até de facto termos filhos. Quando fiz o meu PHD estudava macacos em Porto Rico, depois de ir trabalhar para a Universidade de Durham, o meu campo de trabalho estava tão longe e tinha as crianças pequenas, decidi que tinha de mudar para estudar algo que pudesse estudar em casa, perto de casa.

Qual foi a sua premissa?

Estava interessada no comportamento das famílias durante a noite, em estudar o que as mães e os bebés faziam durante a noite. Como era o seu ambiente de sono, como eram as suas interações durante a noite, como era a amamentação durante a noite, quão distantes estavam, como faziam com que tudo isto resultasse para eles, como conseguiam as mães amamentar frequentemente os bebés e dormir. Eu sabia como eu fazia: trazia o bebé para a minha cama. Mas, nessa altura, as pessoas desdenhavam a partilha a cama com os bebés. Pensavam que a maioria das mulheres não o fazia e eu não acreditava nisso. Aliás, eu achava que a maioria das mulheres, provavelmente, o fazia e queria descobrir se era verdade.

E então? O que descobriu?

Que a maioria das mães que amamenta traz os seus filhos para as suas camas e eles dormem muito nas suas camas. As mães que não amamentam trazem os bebés para as suas camas menos frequentemente. No Reino Unido, em média, metade dos bebés acaba na cama dos pais a certa altura da noite. Mas a amamentação é mesmo distintiva destes padrões.
Estes estudos são uma combinação de dados qualitativos e quantitativos. No início baseavam-se sobretudo nos relatos dos pais sobre o que estava a acontecer. Depois, com o equipamento vídeo, pudemos observar o que se passava no quarto e também trouxemos alguns pais ao laboratório do sono para medir os batimentos cardíacos, etc.
Mais recentemente os estudos tornaram-se outra vez mais qualitativos e começámos a perguntar às mães o que fazem durante a noite e porquê o fazem. Quais são as suas expectativas, que género de desfasamento existe entre as suas expectativas e a realidade.

Quando se tem um bebé, uma das perguntas que se ouve é: já dorme a noite toda? Isto combinado com aqueles casos de bebés que dormem desde muito cedo uma noite seguida cria falsas expectativas? Porque um bebé que dorme a noite toda é a exceção e não a regra, certo?

Claro. Creio que é muito interessante esta obsessão cultural que existe no ocidente; uma obsessão das pessoas que querem saber se os bebés das outras dormem a noite toda. Mas porque são tão intrometidos? Porque querem tanto saber isso? No outro diz estava a falar com uma colega minha que é antropóloga social e estávamos a comentar que os bebés têm de passar por uma série de ritos para se formarem enquanto pessoas, adultos por inteiro. Uma das coisas que eles têm de aprender é, por exemplo, a controlar os seus órgãos internos, e isso é feito naturalmente. Ora outra das coisas que tem de ser controlada é o sono. E parece que estamos a tentar transformar esta coisa, que é muito biológica, que tem tudo a ver com natureza, numa coisa dominada pela cultura. Foi esta transição do natural para o cultural que fez com que o sono seja algo em que toda a gente tem de se meter, ainda que as pessoas o estejam a fazer da maneira certa e que os seus bebés estejam a corresponder e a crescer de forma saudável. O que me parece é que estamos a tentar que os nossos bebés façam isto mais cedo do que é suposto, e cada vez mais cedo, mais cedo, mais cedo…

Mas porque acha que isto acontece com o sono? Porque ninguém diz: ah, vou treinar o meu bebé para ele conseguir andar mais depressa ou mais cedo…

Ah!, mas as pessoas gostam que os seus bebés estejam quietos, por isso não os vão incentivar a andar mais cedo, porque eles ficam menos controláveis. O problema é esta ideia de que são os bebés que têm de se adaptar e integrar nas rotinas dos adultos. Uma das mães que nós entrevistámos disse: os meus bebés sempre se adaptaram aos meus horários e às minhas rotinas. Portanto, existe esta ideia de que os bebés não devem incomodar os pais, não devem interferir na vida dos pais, alterando-a… Mas temos outros pais que dizem: os bebés dormem quando dormem e nós temos de nos moldar e adaptar-nos a isso. Portanto, há visões muito divergentes sobre este tema.

Mas a corrente do treino do sono ainda tem peso e está ativa. Cada mês que passa sai um livro que diz: 10 maneiras de pôr o seu bebé a dormir, faça isto e ele dorme numa semana, treine o seu bebé em duas semanas.

Acho que aqui no Reino Unido tínhamos isso há uns dez anos. Havia muitos livros sobre o tema, mas creio que isso agora já acabou e há pessoas que defendem que os bebés não devem ser treinados para dormir, porque estas coisas terão consequências traumáticas. Portanto creio que é capaz de estar pior nuns países que noutros.

Mas o que diria aos pais que estão tentados a experimentar o treino?

A primeira pergunta que eu lhes colocaria é esta: porque pensam que têm de o fazer? O que se passa com o sono do seu bebé, que os está a incomodar tanto que eles acham que precisam de fazer o seu bebé passar por este processo traumático? Porque é traumático para o bebé. E muitas vezes é traumático para os pais também. Estão a fazer isto porque precisam de dormir mais, ou porque foram pressionados por outras pessoas a fazê-lo? Portanto, eu acho que, antes de mais, quereria saber qual a razão por detrás dessa vontade de treinar o sono do bebé. Há pais que são muito vulneráveis às interrupções do sono e que precisam de conter e controlar o sono dos seus bebés. Mas eu acho que há outras formas de o fazer, em vez de treinar o bebé. Em vez de ser uma batalha, em que um lado ou o outro tem de ganhar, pode ser algo que una os interesses dos pais e dos bebés, fazendo com que se aproximem, harmoniosamente, tentando encontrar estratégias que funcionem para ambos.

Por exemplo?

Bom, para já, acho que devíamos falar com os pais sobre este tema antes de os bebés nascerem. Essa é a parte difícil, porque assim que os pais entram num padrão de treinar o bebé é difícil mudar-lhes as ideias, mas acho que se falarmos com eles antes de o bebé nascer, sobre quais são as suas expectativas, sobre o que eles acham que vão ser as suas noites, assim eles podem pensar quais são as necessidades dos seu bebé e as suas necessidades e como podem lidar com essas necessidades antes de os bebés ficarem completamente desesperados e com fome e desatarem aos gritos. Depois perceber de que forma podem lidar com as noites da maneira mais fácil possível para eles, por exemplo, evitando coisas como ter de descer escadas e fazer biberões a meio da noite e ter de acordar completamente. Ou seja, fazê-los pensar quais serão as suas estratégias durante noite, quem o vai fazer, quanto tempo demorarão a fazê-lo, como vão responder aos sinais do seu bebé, como aprendem a detetar os sinais do bebé antecipadamente, de forma a que lhe respondam e que ele vá dormir imediatamente em vez de entrarem numa situação em que o bebé chora desesperadamente e toda a gente tem de acordar… Creio que tudo gira em termos de saber reconhecer os sinais do bebé, saber quais as suas necessidades e saber como responder. Pensar por antecipação.

E talvez baixar as expectativas, não?

Sim, ter expectativas diferentes, expectativas realistas!

Que expectativas realistas devem ter? O que sabemos sobre o sono dos bebés? O que é que acontece habitualmente?

Sabemos que o bebé não vai dormir a noite toda aos três meses. Isso é certo. E, se por milagre, temos um bebé que dorme a noite toda aos três meses é altamente provável que ele comece a acordar aos quatro meses. O sono dos bebés não progride de forma linear, o bebé não vai dormindo cada vez mais e mais e mais. Às vezes ele dorme, outras vezes não. O sono do bebé, enquanto ser individual, varia de mês para mês e comparar o nosso bebé com o bebé de outra pessoa não serve de absolutamente nada. Porque eles são muito diferentes uns dos outros…. Então temos bebés que dormem 20 horas por dia até bebés que dormem 8 horas por dia. Não há um objetivo comum que devamos ansiar para um bebé de dois ou três meses. Mas todos os bebés, eventualmente, começam a dormir durante períodos mais longos. Mas muitos não dormem uma noite inteira até aos 12 meses.

Ou mais….

Sim. (risos)

É importante aceitar que é assim, não? Ou seja, ter a tal expectativa realista… É importante dizer às pessoas que o normal é isto, é os bebés acordarem várias vezes durante a noite?

Sim, mas mais que isso. Os adultos têm esta ideia de que uma boa noite de sono envolve ir para a cama, adormecer, ficar a dormir e não ser perturbado durante a noite. E que só se tiverem um longo período de sono não interrompido é que tiveram uma boa noite de sono. Mas isso não é, de facto, verdade. Porque nós podemos dormir o suficiente em períodos mais curtos, com interrupções, mas achamos que não.

Ajustar as expectativas é fundamental e se, de facto, nós medirmos o sono de uma pessoa e lhe perguntarmos quanto tempo ela dormiu normalmente subestimam a quantidade de sono que tiveram, mas em larga medida! Especialmente as mães de primeiro filho, subestimam muito o sono que tiveram.

Portanto, é completamente claro para si que o treino do sono é mau…

Temos de ver o que é isso do treino do sono, porque ele vem em embalagens bem diferentes. Algumas são muito duras e outras são o que se chama de gentle sleep training. Acho que aquele treino em que deixamos o bebé sozinho a chorar, ou o deixamos sozinho durante longos períodos e não voltamos, e não o confortamos, é muito mau. Porque é como abandonar um bebé, sendo que o bebé não sabe que não foi abandonado. E, por isso, os seus níveis de stress vão subir imensamente.

Agora, se a mãe e o pai acham necessário treinar o bebé para que não acorde tantas vezes durante a noite — e é importante saber que fazer isso terá impacto na amamentação — se acham que têm mesmo de fazer isso pela sua sanidade, ou outra coisa qualquer, então seria bom saberem que há outras variantes do treino do sono onde os pais ficam ao pé do bebé, confortam o bebé em vez de saírem do quarto, não o pegam ao colo, mas tocam nele, acalmam-no. Ou pegam-lhes ao colo, acalmam-nos e depois deitam-nos outra vez. Há uma panóplia de coisas.

Outro dos temas do sono dos bebés é: onde dorme o bebé?

Mas porque razão isso é sequer um tema? Alguém tem alguma coisa a ver com isso?

Isto é algo muito cultural, não é?

A maioria das pessoas no Reino Unido têm os bebés no seu quarto nos primeiros meses. Uma boa parte delas não os deixam até aos seis meses, ao contrário do que é altamente aconselhável, que eles fiquem no quarto dos pais pelo menos até aos seis meses. Muitos mudam os bebés por volta dos três meses, porque acham ou que o bebé os incomoda, ou porque já é grande demais, acham que seis meses é muito tempo, ou porque simplesmente montaram um lindo quarto e querem usá-lo. Os pais, os homens, são os primeiros a insistir que o bebé tem de sair do quarto. Costumo falar nas minhas palestras sobre os bebés humanos, sobre quão pouco desenvolvidos os bebés humanos são quando nascem. E, na verdade, durante os primeiros três ou quatro meses é como se eles estivessem a terminar a gestação.

É o chamado quarto trimestre da gravidez…

Sim. Portanto, colocar o bebé num quarto separado significa pôr completamente de lado, ignorar, esta ideia de que eles ainda são incapazes de manter a sua termorregulação, o seu ritmo cardíaco… A sua fisiologia ainda não se desenvolveu o suficiente para que eles estejam no ponto de serem independentes. Portante, parece-me muito duro, muito severo, colocá-los num quarto separado durante a noite, durante oito horas, e esperar que eles consigam lidar com isso.

E o co-sleeping? O que acha disso?

Bom, creio que se não é daquelas pessoas que tem comportamentos de risco então o co-sleeping é uma coisa completamente normal e o seu bebé não vai estar em risco por estar a fazer isso. Há uma pequena percentagem de pessoas e bebés para as quais o co-sleeping é um risco. Sabemos quais são esses riscos e eles têm a ver com o comportamento parental.

Por exemplo?

Fumar durante a gravidez, fumar quando se tem um bebé, beber álcool e adormecer com o bebé e dormir com o bebé em sofás. Há também alguns bebés que têm vulnerabilidades que desaconselham o co-sleeping, como bebés prematuros, alguns bebés que têm problemas cerebrais. Mas é uma percentagem mínima, a grande maioria dos bebés lida muito bem com o co-sleeping. Eles estão desenhados para estarem em contacto com as suas mães.

Há pessoas que têm receio de se virarem durante a noite e caírem em cima do bebé e por causa disso dizem que não dormem bem com o bebé na sua cama…

Não dormem? Aposto que dormem bem. E aposto que não vão rolar.

E o que responde aos argumentos de que o co-sleeping vai afetar a autonomia das crianças?

Onde estão esses estudos que dizem que colocar um bebé a dormir sozinho o vai tornar mais autónomo? Acho que não há nenhum. Não há evidência cientifica, é um mito. Não há evidência de que os bebés que dormem sozinhos são mais independentes ou mais autónomos quando crescem do que bebés que dormiram com os seus pais.

Instintivamente todas as mães querem os bebés junto delas, não?

Sim, instintivamente o que queremos é proteger o nosso bebé. Portanto, queremos que ele esteja onde o possamos ver e o possamos tocar para sabermos que ele está seguro.

A ideia que eu tenho é que, quando falamos com as pessoas que conhecemos e que têm bebés, elas fazem disto quase um segredo. Porque se formos ver, toda a gente dorme com os bebés na cama, pelo menos de vez em quando, ou metade da noite…

Sim, completamente. É estranho, porque parece que é algo que toda a gente sente que deve esconder.

Mas porquê? Não seria mais fácil assumir isso como algo normal, em vez de achar que é normal os bebés dormirem a noite inteira?

Sim, é verdade.

Como é que chegámos a este ponto, aqui no ocidente?

Eu creio que, se analisarmos isto do ponto de vista cínico, tem a ver com o sistema patriarcal. Com os homens terem de assumir controlo sobre tudo.

Acha mesmo?

(risos) Começou nos anos 20. Houve alguns pediatras homens e psicológicos do comportamento que pensavam que sabiam tudo sobre parentalidade e decidiram que iriam ensinar as mulheres a criar os seus bebés. Foi quando começaram a aparecer os guias para pais. É a supremacia do macho, é a sociedade patriarcal na qual as mulheres precisam de ser ensinadas a não serem demasiado indulgentes, não serem tão emocionais em relação aos bebés. Foi um esforço de controlo sobre as mulheres e sobre as crianças. Do ponto de vista sociológico é tudo sobre poder, tudo gira em torno do poder.

Há uma altura em que de facto as crianças deviam dormir a noite toda?

Depende de cada criança, mas a maioria parece começar a dormir a noite inteira por volta dos seis meses, uma ou outra noite, não todas as noites. Vai depender se mamam, se os dentes estão a nascer… Há tantas coisas que são disruptivas do sono no primeiro ano ou nos primeiros dois anos… A ideia de que, quando eles começam a fazê-lo, vão continuar a fazê-lo, e não pararão e nunca mais vão acordar durante a noite, é completamente irrealista, porque há muita coisa a acontecer nos seus corpos e no seu cérebro que os vai fazer acordar a meio da noite. Ao longo do tempo, gradualmente, eles vão dormir mais e mais, quando mais nada estiver a acontecer. Mas, quando algo está a acontecer, isso vai fazê-los acordar. Temos de aceitar que, durante os primeiros dois ou três anos, acordar durante a noite faz parte da paternidade. Faz parte. Quando eles tiverem 15 anos vamos ficar aborrecidos com o tanto que eles dormem!

Também há aquelas crianças que, apesar de dormirem a noite toda, têm dificuldade em adormecer, querem que o pai ou a mãe estejam ao seu lado. Como devemos lidar com isto? Ficamos lá?

Sim, isso é o que eu fazia, ficava lá. Esperava que eles entrassem num sono profundo e depois saía devagarinho. Se eles precisavam que eu estivesse lá para relaxarem o suficiente, de forma a adormecerem tranquilamente, então eu ficava lá. Não vejo qualquer razão para que tivesse de os forçar, de que forma seja, a adormecerem sozinhos, para ficarem aterrorizados e depois dormirem mal, porque não conseguiram relaxar e adormecer. Há todo o tipo de coisas estranhas a acontecer na cabeça das crianças pequenas. Eles vêem monstros em todo o lado, por exemplo, portanto, se eles precisam do nosso conforto, isso faz parte do nosso trabalho enquanto pais, dar-lhes esse conforto.

Fonte: Observador.pt

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