A criança de dois anos ainda é, em parte, um bebé, o mais esperto e apto dos bebés. Do segundo para o terceiro ano de vida ela vai deixando o jeitão de bebé para trás e tornando-se o que consideramos de fato uma criança, em plena fase social e lúdica. Quando os adultos respeitam e aceitam o desejo de autonomia que surge na criança a partir dos dois anos, ela sai das fraldas, desmama, larga a chupeta, dorme mais facilmente sem embalo apreciando uma história, uma conversa de fim de dia. É apta para ser uma companheirinha, já consegue esperar, entende o que falamos, responde, pergunta, imita os nossos gestos e afazeres.
Mas o que mais se vê é criança de dois anos sendo apelidada de terrível, existe a expressão terrible twos para dar referência à fase de desejo e aptidão por autonomia, muitas vezes confundida pelos adultos como teimosia.
Afinal, o que perdem os pais com a criança maiorzinha?
Perdem controle e são exigidos em musculatura e criatividade, isso irrita alguns adultos que se engalfinham em brigas com as pequenas criaturas.
A criança de dois anos acha divertidíssimo vasculhar a casa, pesquisar, abrir torneiras, desdobrar meias, puxar rolo de papel higiénico, subir em cadeiras, bancos, armários, mexer com água, terra, farinha. Se ela não for levada para brincar na rua, num parque, fará da sua casa o seu “playground”e se for também fará, talvez apenas com um pouco menos de intensidade. Cabe aos pais ensinar como se folheia livros sem rasgar, como pintar tal parede forrada com papel e não outra, como carregar por alguns metros um copo de vidro sem partir, aliás essa última é uma façanha que toda criança de dois anos ama fazer, mas que fará muito mal com cuidadores nervosos, ansiosos e pré-prontos para um drama de escadaria.
A maior parte dos bebés ao completar dois anos já dorme a noite inteira justamente porque o dia é alucinante em desfrutes depois da longa jornada de 24 meses em que se dedicaram a ver melhor, ouvir melhor, decodificar a linguagem, além de se arrastarem até gatinhar e andar. Foi um trabalho duro, o adultos têm o dever de compreender isso!
Aos dois anos a criança está comemorando o gran finale da primeira parte do seu desenvolvimento e fica irritadíssima ao ser tratada como idiota, alguém sem “opinião”. Ficam frustradas se as arrancam do chão para o colo em caso disso não ter sido minimamente compreendido e da mesma forma ficam furiosas se pedem colo e não ganham, em caso de tédio ou cansaço. O adulto, irado, muitas vezes acha que a criança é apenas folgada e “cheia de vontades”, mas ela é somente um bebezão e os raciocínios mais complexos estão iniciando.
Ela não entende absolutamente que está na hora de ir embora se isso for feito de repente, ela precisa de duas ou mais vezes de uma mesma frase de repetição para elaborar e aí sim pode ser uma colaboradora melhor. Por exemplo, no parquinho:”olha, nós vamos encher o balde mais três vezes e depois vamos”. Ela pode não entender matematicamente o que são três vezes, mas vai ficar fascinada em ouvir e ver o que são três vezes e vai colaborar. Agora, quando o adulto diz “vamos, está na hora!” ela é capaz de surtar nos tais terrible twos simplesmente porque a sua autonomia é seu calcanhar de aquiles. Ela aceita aprender, aceita e gosta de imitar o adulto, mas há uma linha ténue aí na hora do adulto tratá-la como se ela estivesse com um ano. Bebés de um ano aceitam melhor a engambelação feita pelos adultos, protestam por poucos minutos e distraem-se logo com outra coisa, mas crianças de dois anos simplesmente não aceitam engambelação, exigem respeito, são pequenas cidadãs.
A boa nova é que se bem tratada e compreendida no funcionamento do seu cérebro, a criança de 3, 4 anos chega a essa fase sem ataques de birra e capaz de conversar, até mesmo argumentar. Agora, se foi pouco ouvida, se o que ela queria valia uma vez e outra não, se pais, mães ou cuidadores não tiveram critérios e nem paciência para entendê-la, ela chegará um monstrinho aos quatro anos porque finalmente, com capacidades mais desenvolvidas, vai colocar para fora o que viveu e o que não pôde viver aos dois anos. Fase de entender regras mais complexas, como não roubar em jogos, por exemplo, a criança de 4 anos pode recusar-se a isso e o que está por trás é nada menos que mágoa por não ter sido respeitada anteriormente. Ela vai precisar processar e jogar para fora, elaborando do jeito dela o que fizeram com ela. Se foi manipulada, vai manipular, se foi desrespeitada vai desrespeitar, se não foi ouvida, vai gritar.
E aí, quem sabe, vão inventar o terrible four, mas de verdade o maior trabalho e a maior alegria de cuidar de uma criança é compreender como ela funciona de acordo com o seu estágio de desenvolvimento, sempre mais recebendo do que dando, observando mais do que determinando, sacando o que ela sente por trás de seus raciocínios bem simples, mais vinculados com prazer do que com dever.
Criança que fica mimada não é criança que se sente compreendida, crianças mimadas são crianças que foram incompreendidas, preenchidas com coisas para calarem suas bocas e tudo que uma criança a partir de dois anos precisa é de menos investimento oral e nível quase zero de engambelamento. Comum que coma menos do que comia com um ano, comum que não prefira ficar vendo TV e comendo, mas aprontando livremente pela casa. O doce como suborno sempre funciona de imediato, assim como palmadas e gritos, insultos e isso faz não só com que o adulto traia a criança, mas ela própria se sinta em traição a seus desejos, o que é bem mais complicado. É mais rápido escolher a educação violenta, sedutora ou combinar essas duas formas de levar a criança, mas o preço pode ser alto para a convivência com os filhos, que é para sempre.
A partir dos dois anos a criança está apta para livrar-se dos consolos orais, da mamadeira ao peito, da chupeta ao mingau, mas para isso necessita de adultos dispostos a soltá-la para correr, fuçar, pesquisar o ambiente e interagir com ela de maneira menos oralizada. Adultos preguiçosos costumam reclamar mais de cuidar de crianças de dois anos, adultos preguiçosos são adultos, eles mesmos, pendurados na fase oral do desenvolvimento.
Fonte: Cláudia Rodrigues